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segunda-feira, 2 de junho de 2025

Convenção 190 da OIT: eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho

Convenção 190 da OIT:
eliminação da violência e do assédio
no mundo do trabalho

A Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 21 de junho de 2019, durante a 108ª Conferência Internacional do Trabalho em Genebra, com produção de efeitos a partir de junho de 2021, conjuntamente com a Recomendação 206, representa um avanço paradigmático no Direito Internacional do Trabalho. Pela primeira vez, a comunidade global consagra expressamente o combate à violência e ao assédio no contexto laboral, reconhecendo tais condutas como violações dos direitos humanos fundamentais e obstáculos ao trabalho decente e inclusivo.

Esse tratado internacional constata que a violência e o assédio no trabalho atingem não apenas a saúde física, psicológica e sexual das pessoas, mas também abalam sua dignidade, o convívio familiar e a integração social. Esses comportamentos comprometem a qualidade dos serviços públicos e privados e acabam por dificultar o ingresso, a permanência e o avanço profissional — sobretudo das mulheres — no mercado de trabalho. Para enfrentar esse problema, a norma exorta os Estados-Membros a adotarem uma política de tolerância zero, combinando ações de prevenção, mecanismos de repressão efetivos e estruturas de acolhimento às vítimas.

A Convenção 190 da OIT ainda não foi ratificada pelo Brasil. O processo de ratificação foi iniciado pelo governo brasileiro em 2023, com o envio da proposta à Câmara dos Deputados. Porém, a ausência de ratificação não impede a sua plena aplicação, como fonte material e parâmetro hermenêutico, no território nacional em razão de seis fatores a seguir catalogados: I) Falta de regulamentação específica por meio de lei ordinária federal; II) Direito comparado como fonte subsidiária da normatização brasileira, nos termos do art. 8º da CLT; III) Trata-se de norma internacional auto e imediatamente aplicável, conforme diretrizes contidas no artigo 5º, §§1º e 2º da Constituição Federal; IV) Controle de convencionalidade consistente na análise da compatibilidade de normas internas com os direitos humanos estabelecidos na Convenção 190 da OIT; V) A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998 reafirma a importância da eliminação da discriminação nas relações de labor, conferindo status de “core obligation” (obrigação essencial) à Convenção 190 da OIT; e VI) A Resolução 492/2023 do CNJ estabelece a adoção da “Perspectiva de Gênero” nos julgamentos em todo o Poder Judiciário.

Houve nítida preocupação da OIT em estabelecer uma conceituação mais abrangente do que se entende atualmente por meio ambiente do trabalho. A utilização da expressão “world of work” (mundo do trabalho), na versão em inglês da Convenção 190 da OIT, em vez de “workplace” (local de trabalho), permite um maior alcance do âmbito de proteção contra a violência e o assédio, independentemente da vinculação jurídica do trabalhador (empregados, prestadores de serviço, autônomos, trabalhadores informais, estagiários, aprendizes, voluntários, etc.), englobando as condutas abusivas nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual verificadas em um espectro holístico (locais de trabalho, trajetos, deslocamentos, alojamentos, refeitórios, vestiários, espaços públicos, home office, espaços virtuais, ambientes de comunicação, etc.).

Pelo texto internacional, também houve tratamento mais adequado da violência e do assédio como um conceito único e integrado, reconhecendo que esses fenômenos constituem o mesmo ilícito. Essa equiparação conceitual, fruto das conclusões da Reunião de Peritos de 2016, visa assegurar uma compreensão mais ampla e eficaz das diversas formas de violência no mundo do trabalho, com especial atenção àquelas baseadas em gênero e ao uso indevido de tecnologias. Ao eliminar a fragmentação terminológica e conceitual, a Convenção busca fortalecer os instrumentos normativos para prevenção, proteção e reparação das vítimas no âmbito laboral.

Outra das inovações implementadas pela Convenção 190 da OIT, já no seu artigo 1º, é justamente o reconhecimento de que o assédio não depende apenas de episódios repetidos, mas sim da ocorrência de um único ato suficientemente grave para sua caracterização. Esse enfoque robustece a proteção da vítima, pois evita que condutas violentas isoladas, porém de alto impacto — como uma abordagem sexual explícita ou uma ameaça de demissão pública — sejam desconsideradas por não se enquadrarem em determinado padrão de repetição. Trata-se de uma mudança substancial na teoria clássica, uma vez que os critérios de repetição sistemática e temporalidade são relativizados em prol da efetividade de políticas de equidade e não discriminatórias.

Apesar de alguns julgados mencionarem a Convenção 190 da OIT como fundamento para reconhecer o assédio moral mesmo diante de ato pontual e isolado, a maioria dos acórdãos trabalhistas enfatiza a necessidade de comprovação de condutas abusivas reiteradas para configurar o assédio moral. Entretanto, mesmo nestes casos de ocorrência única, a jurisprudência considera o contexto e a gravidade do ato, demonstrando uma tendência de interpretação ampla do conceito de assédio. Nesse sentido:

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ASSÉDIO SEXUAL. A Convenção 190 da OIT estabelece a possibilidade de violência ou assédio no ambiente de trabalho proveniente de comportamentos e práticas inaceitáveis de ocorrência única, ampliando o conceito doutrinário e jurisprudencial de assédio sexual que exige a reiteração de condutas para a caracterização do instituto. Nessa senda, o comportamento machista dissimulado e estereotipado de descabida intenção sexual no ambiente de trabalho caracteriza o assédio sexual, a ensejar a condenação ao pagamento da indenização por danos morais. (TRT-3, ROT-0010444-75.2023.5.03.0132, Relatora: Cristiana Maria Valadares Fenelon, Julgado em 06/10/2023.)

ASSÉDIO MORAL. ATO ÚNICO. CARACTERIZAÇÃO. PRESSÃO PSICOLÓGICA E AMEAÇA DE DEMISSÃO PÚBLICA. DANOS MORAIS E DEVER DO EMPREGADOR. A prática de ameaça de demissão de forma pública é abusiva e inadequada, violando o dever legal do empregador de tratar seus funcionários com respeito e dignidade. Ato único que se considera assédio moral, especialmente quando realizado publicamente pelo empregador na presença de outros empregados, potencializando a humilhação e o constrangimento. O assédio moral não se limita a situações repetitivas ou prolongadas, podendo ser configurado por um único ato de gravidade suficiente para causar danos significativos à saúde mental do trabalhador. Incidência da Convenção 190 da OIT. (TRT-4, ROT-0020884-70.2022.5.04.0025, Relatora: Desembargadora Beatriz Renck. Julgado em 11/06/2024.)

A definição de violência e assédio na Convenção 190 da OIT é ampla, abrangendo comportamentos que visam, causem ou sejam suscetíveis de provocar danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos, incluindo as práticas abusivas “antifemininas”. Os ilícitos contra as mulheres no mundo do trabalho refletem persistentes estruturas discriminatórias sustentadas por padrões histórico-culturais patriarcais (machismo e misoginia) que, mesmo diante de um robusto arcabouço normativo internacional, ainda perpetuam desigualdades de oportunidades, segregações diversas (verticais e horizontais), bem como práticas sutis ou explícitas de dominação. Diante desse cenário, a proteção internacional conferiu tratamento especial à violência em razão de gênero, englobando não apenas as mulheres cisgênero, mas também as pessoas transgênero.

Cabe aqui destacar que foi instituído pelo CNJ, em outubro de 2021, o chamado “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, o qual foi concebido para orientar o julgamento de processos sob a lente do gênero, de modo a detectar e desconstituir estereótipos, preconceitos e desigualdades históricas. O protocolo estabelece diretrizes práticas para condução de procedimentos, desde a recepção de provas até a fundamentação das decisões judiciais, enfatizando a necessidade de análise contextualizada das relações de poder entre gêneros e a inserção de critérios objetivos para evitar julgamentos enviesados.

Outrossim, a Recomendação 206 da OIT fornece diretrizes para implementar a Convenção, incluindo a importância de fortalecer as fontes de dados e informações sobre violência e assédio no trabalho. A Recomendação prevê ainda a inversão do ônus da prova em situações específicas. Este dispositivo (art. 16, alínea “e”, da Recomendação 206 da OIT) visa garantir que a vítima de violência e assédio, especialmente no caso de assédio baseado em gênero, não tenha que comprovar a existência do agressor ou da situação constrangedora, permitindo que o empregador ou a entidade responsável prove o contrário, mediante a demonstração do fornecimento de um ambiente de trabalho sadio e equilibrado.

Aliado a isso, destaca-se a promulgação da Lei 14.457/2022, importante mecanismo nacional de prevenção e combate ao assédio sexual e outras formas de violência no trabalho, atribuindo à Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio (CIPA) as seguintes obrigações: I) Inclusão, nas normas internas da empresa, de regras de conduta sobre assédio sexual e demais violências, com ampla divulgação; II) Criação de procedimentos formais para recebimento e acompanhamento de denúncias, inclusive garantindo o anonimato do denunciante, para aplicação de sanções administrativas, sem prejuízo dos procedimentos jurídicos cabíveis; III) Incorporação de temas de prevenção e combate ao assédio sexual e outras violências nas atividades e práticas da CIPA; e IV) Realização, no mínimo a cada 12 meses, de ações de capacitação, orientação e sensibilização de todos os níveis hierárquicos sobre violência, assédio, igualdade e diversidade em formatos acessíveis e efetivos.

Por fim, a Convenção 190 da OIT representa um significativo marco global ao ampliar o conceito de violência e assédio de gênero, reconhecendo a interseccionalidade (sobreposição de múltiplos fatores de opressão, dominação ou discriminação) e estendendo a proteção a todos os grupos vulneráveis, exigindo dos Estados e empregadores ações concretas para garantir um ambiente laboral livre de discriminações e violências, em consonância com os princípios de igualdade, dignidade e trabalho decente para todos.

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SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça dos; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Convenção 190: violência e assédio no mundo do trabalho. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 13, n. 126, p. 7-31, nov. 2023.

TRT-3, ROT-0010444-75.2023.5.03.0132, Relatora: Cristiana Maria Valadares Fenelon, Julgado em 06/10/2023.

TRT-4, ROT-0020884-70.2022.5.04.0025, Relatora: Desembargadora Beatriz Renck. Julgado em 11/06/2024.


>>> Cartilha do MPT sobre a Convenção 190  e a Recomendação 206 da OIT

                  

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