Collateral estoppel:
aplicabilidade no processo do trabalho
Como apanágio do princípio constitucional da segurança jurídica, a autoridade da coisa julgada é a situação jurídica consistente na imutabilidade e indiscutibilidade do mérito da sentença, refletindo a força coercitiva final do provimento jurisdicional (final enforcing power). Assim, a eficácia preclusiva do instituto propaga-se de forma endoprocessual e exoprocessual, impedindo que outra demanda seja instaurada para rediscutir o mesmo litígio.
A coisa julgada formal consiste na imutabilidade da decisão no âmbito do processo em que foi proferida, impedindo a rediscussão da matéria dentro da mesma relação processual, enquanto a coisa julgada material, prevista no art. 502 do Código de Processo Civil, projeta seus efeitos para além do processo, tornando a decisão imutável e indiscutível em quaisquer demandas futuras. Os limites objetivos da coisa julgada, regulados pelo art. 503 do CPC, circunscrevem-se ao dispositivo da sentença e às questões decididas com força de lei, não abrangendo os fundamentos de forma autônoma, salvo quando a resolução destes constituir pressuposto necessário da parte dispositiva. Já os limites subjetivos, disciplinados pelo art. 506 do CPC, vinculam apenas as partes do processo, não alcançando terceiros, salvo nas hipóteses legalmente previstas, assegurando, assim, a eficácia inter partes da decisão judicial.
Já a doutrina do collateral estoppel, conhecida por preclusão colateral ou preclusão de questões, de origem anglo-saxã, impede a rediscussão, em demanda subsequente, de questão de fato ou de direito idêntica já definitivamente decidida, quando a parte contra a qual se invoca teve oportunidade plena e justa de discutir a matéria no processo original.
Para a correta aplicação do instituto do collateral estoppel exige-se a presença dos seguintes requisitos cumulativos (tríplice identidade): I) identidade precisa da questão debatida; II) decisão anterior com caráter definitivo ou preclusão sobre o ponto específico; III) comprovação de que a parte contra a qual se invoca teve full and fair opportunity de litigar a matéria (ampla defesa, contraditório e possibilidade de efetiva produção probatória).
Funcionalmente, esse tipo de preclusão busca assegurar coerência decisória e eficiência processual, evitando a multiplicação inútil de litígios; distingue-se da coisa julgada plena quanto ao alcance subjetivo — podendo operar mutual ou non-mutual — e deve ser admitida com prudência para não vulnerar garantias constitucionais do contraditório e do direito à prova. Portanto, é necessário, antes de sua aplicação no caso concreto, o fornecimento de documentação robusta que comprove a regularidade do processo origem.
Nessa linha de raciocínio, importa destacar que a dedução de razões processuais em sentido oposto à anterior manifestação lançada no processo pode configurar comportamento contraditório não admissível (non venire contra factum proprium), conforme lição de escol:
A proibição da contraditoriedade no processo também é conhecida mediante o instituto anglo-saxão da estoppel, pelo qual entende-se estabelecida uma presunção iure et de iure que impede juridicamente que uma pessoa afirme ou negue a existência de um fato determinado, em virtude de haver anteriormente executado um ato, feito uma afirmação ou formulado uma negativa em sentido precisamente oposto (...). Pode indicar, outrossim, um freio erguido à pretensão de quem reclama algo em aberta contradição com o que havia anteriormente aceitado. (MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 215.)
A preclusão colateral pode ser admitida no processo do trabalho, porém sob condições rigorosas e com cautela técnica, na medida em que a alteração introduzida pelo art. 506 do CPC de 2015, ao suprimir a expressão que antes vedava o benefício de terceiros no Código de Processo Civil de 1973, permitiu a utilização de uma interpretação mais expansiva para que a eficácia da coisa julgada irradie efeitos favoráveis a não litigantes em hipóteses concretas.
A tese favorável sustenta que, aplicada com os requisitos supracitados, a preclusão colateral produz ganhos claros de eficiência processual, evita a repetição inútil de debates fáticos — principalmente em execuções, litígios estruturais, sucessões empresariais e ações envolvendo devedores contumazes — e harmoniza-se com princípios constitucionais e processuais como a duração razoável do processo e a boa-fé objetiva. Estudos doutrinários e experiências estrangeiras adaptáveis ao contexto pátrio reforçam essa direção, destacando utilidade prática desde que observados controles rígidos quanto à identidade da matéria e à regularidade do processo anterior.
Eis julgado de acordo com a tese favorável:
ACÓRDÃO ANTERIOR RECONHECENDO A SUCESSÃO TRABALHISTA NESTES AUTOS. COISA JULGADA. LIMITES SUBJETIVOS. PENHORA NO ROSTO DOS AUTOS E TRAMITAÇÃO CONJUNTA DA EXECUÇÃO DESTES AUTOS (0000754-60.2010.5.02.0211) COM A EXECUÇÃO DE OUTRO PROCESSO (0000755-45.2010.5.02.0211), SOB A DIREÇÃO DO MESMO JUÍZO. POSSIBILIDADE DE O TERCEIRO ALEGAR EM SEU FAVOR A PROIBIÇÃO DE REDISCUTIR A QUESTÃO ACOBERTADA PELO MANTO DA COISA JULGADA (NON-MUTUAL COLLATERAL ESTOPPEL). INTELIGÊNCIA DA NORMA DO ARTIGO 506 DO CPC/2015. Para além do fato de que houve penhora no rosto destes autos, oriunda do Proc. 0000755-45.2010.5.02.0211 e tramitação conjunta das execuções sob o comando do mesmíssimo juízo (Vara do Trabalho de Caieiras), aplica-se à situação em exame a norma do art. 506 do CPC. A nova redação do art. 506 do CPC, ao suprimir a expressão "não beneficiando", antes presente no revogado art. 472 do CPC/1973, abre espaço para que a eficácia da coisa julgada possa irradiar seus efeitos em favor de terceiros, em determinadas circunstâncias, como no caso. Essa mudança paradigmática encontra respaldo na doutrina estrangeira, notadamente no instituto do "non-mutual collateral estoppel" do direito norte-americano. Segundo o seu postulado, se alguém já teve a oportunidade justa e integral de discutir algum assunto em determinado processo, ele fica proibido de, mesmo em outro processo, envolvendo outro litigante, rediscutir o mesmo tema, de modo que a extensão subjetiva da coisa julgada pode ser utilizada em benefício de terceiros. (TRT-2; AP-0000754-60.2010.5.02.0211; Relatora: Desembargadora Maria de Lourdes Antônio; Juntado aos autos em 18/07/2024.)
Em contrapartida, a tese contrária ressalta limites operacionais: persiste significativa jurisprudência que interpreta o art. 506 do CPC como limitador da eficácia subjetiva da coisa julgada às partes entre as quais foi dada, o que tem levado à rejeição de sua invocação em favor de terceiro não participante. Ademais, há o risco concreto de cerceamento de defesa quando se pretende indeferir produção probatória com fundamento exclusivo em decisões pretéritas, pois as razões de decidir não possuem eficácia preclusiva, sendo que o art. 369 do CPC preserva o direito das partes de empregar meios legítimos para provar a verdade dos fatos.
Nesse mesmo sentido:
NULIDADE DO PROCESSO - CERCEAMENTO DE DEFESA - INDEFERIMENTO DE PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL E OITIVA DO AUTOR. 1. O único elemento da decisão com capacidade para ficar imunizado é o dispositivo, ou seja, o deferimento ao pagamento de certas parcelas postuladas. 2. As razões pelas quais houve o deferimento (ausência de comprovação da justa causa alegada) não produzem coisa julgada (CPC, 504, I e II). 3. Somente em decisões que formam precedentes qualificados seria possível estabelecer o debate sobre o instituto do collateral estoppel (coisa julgada da verdade fática). 4. Considerar as razões de decidir de outro pronunciamento judicial, que como dito não fica acobertado pela coisa julgada, para indeferir a produção de provas, acarreta o cerceamento ao direito de defesa, como no caso presente, uma vez que o art. 369 do CPC garante às partes o "direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos (...) para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz". Recurso da parte ré provido. (TRT-24; ROT 0024191-92.2024.5.24.0061; Relator: Desembargador CESAR PALUMBO FERNANDES; Juntado aos autos em 16/12/2024.)
Diante desse cenário, a adoção prática do instituto na Justiça do Trabalho reclama fundamento técnico robusto, com a juntada integral dos autos anteriores ou de certidões idôneas, bem como a formulação de pedidos subsidiários (por exemplo, reconhecimento apenas para efeitos executivos ou probatórios) que mitiguem o risco de indeferimento ou violação do contraditório. Peças que invoquem o collateral estoppel devem, portanto, ser redigidas com atenção probatória e estratégica.
Em conclusão, a aplicação do collateral estoppel no processo do trabalho é juridicamente viável em tese e potencialmente útil em casos concretos que satisfaçam requisitos estritos; todavia, na ausência desses requisitos ou diante de jurisprudência regional contrária, seu manejo imprudente tende a ensejar indeferimento e retrabalho. Por isso, qualquer invocação do instituto exige documentação probatória completa e argumentação pormenorizada sobre a observância do contraditório e da ampla defesa no processo originário.
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Fontes utilizadas
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 215.
TRT-2; AP-0000754-60.2010.5.02.0211; Relatora: Desembargadora Maria de Lourdes Antônio; Juntado aos autos em 18/07/2024.
TRT-24; ROT 0024191-92.2024.5.24.0061; Relator: Desembargador CESAR PALUMBO FERNANDES; Juntado aos autos em 16/12/2024.
VON ZUBEN, Catarina. III Seminário: Doutrina do “collateral estoppel” em Prol dos Credores. Execução Efetiva (canal no YouTube), São Paulo, 2025. Disponível em: <https://youtu.be/E6-qKyKzHwg>. Acesso em: 23 ago. 2025.
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Nota de autoria
Texto de autoria de Wagson Lindolfo José Filho.
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