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segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Acúmulo de função: atividades de menor complexidade e responsabilidade

Acúmulo de função: atividades de menor complexidade e responsabilidade

O acúmulo de função constitui fenômeno jurídico-laboral caracterizado pela exigência, por parte do empregador, de que o trabalhador exerça, simultaneamente, atividades adicionais àquelas originalmente contratadas, sem a devida contraprestação pecuniária. Tal prática, embora recorrente em diversos segmentos econômicos, gera controvérsias quanto à sua legalidade, afetando negativamente a qualidade do serviço e a saúde ocupacional.

O parágrafo único do art. 456 da CLT estabelece que, na ausência de cláusula expressa, presume-se que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. Tal dispositivo serve de fundamento para a delimitação do campo de atuação funcional do trabalhador, sendo diretamente relacionado ao instituto do acúmulo de função. Isso porque, ao se exigir o desempenho de atividades diversas daquelas originalmente contratadas, deve-se observar se essas tarefas guardam compatibilidade com a qualificação técnica, experiência, formação acadêmica e aptidões do empregado.

No contexto específico de tarefas de menor complexidade ou responsabilidade, a jurisprudência majoritária tem adotado posicionamento restritivo, entendendo que, nesses casos, não há direito ao plus remuneratório. Nesse sentido:

PLUS SALARIAL. ACÚMULO DE FUNÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. Não comprovado pelo autor o exercício de tarefas de maior complexidade técnica, nem o acréscimo de serviço com a ampliação de sua jornada laboral, improcede sua pretensão ao recebimento de plus salarial por acúmulo de função. (TRT-8, ROT-0000825-80.2022.5.08.0015, Relatora: Desembargadora Graziela Leite Colares, Julgado em 10/10/2023.)

1. DESVIO DE FUNÇÃO. DIFERENÇAS SALARIAIS. INDEVIDAS. Demonstrando os elementos dos autos que a função para a qual desviado o empregado tinha remuneração inferior, inviável o pagamento de diferenças. 2. MOTORISTA DE AMBULÂNCIA. PADIOLEIRO. ACÚMULO DE FUNÇÃO. INEXISTÊNCIA. Sendo compatíveis as atividades de motorista de ambulância e padioleiro, não há que se falar em acúmulo funcional. 3. Recurso do reclamante conhecido e não provido. (TRT-10, ROT-0000834-54.2023.5.10.0111, Relator: Desembargador Gilberto Augusto Leitão Martins, Julgado em 10/04/2024.)

RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA. ACÚMULO DE FUNÇÃO. NÃO CONFIGURAÇÃO. De acordo com a melhor doutrina e jurisprudência, não configura acúmulo de funções o mero exercício de tarefas diferentes, executadas na mesma jornada de trabalho, que não exijam maior capacitação técnica ou pessoal do empregado, e que perfeitamente compatíveis com a sua condição pessoal. Nessa hipótese, não há de se falar no percebimento de diferenças salariais entre uma função e outra. Recurso ordinário provido para julgar improcedentes os pedidos formulados na ação. (TRT-6, ROT-0000288-55.2022.5.06.0172, Relatora: Desembargadora Carmen Lucia Vieira do Nascimento, Julgado em 05/02/2025.)

O Tribunal Superior do Trabalho, ao julgar o Recurso de Revista nº 0100221-76.2021.5.01.0074 sob o rito dos recursos repetitivos (tema vinculante nº 128), reafirmou sua jurisprudência dominante de que o exercício concomitante das funções de motorista de ônibus urbano e cobrador não gera direito a acréscimo salarial, porque as funções são compatíveis e complementares, não exigindo conhecimentos específicos distintos, inclusive ocorrendo dentro da mesma jornada de trabalho.

Com a devida vênia, discordamos parcialmente dessa jurisprudência majoritária e restritiva, uma vez que legislador originário (art. 456, parágrafo único, da CLT) definiu como único critério de organização da função laboral a compatibilidade do serviço com a condição pessoal do empregado, independentemente do tipo de tarefa, com menor ou maior grau de responsabilidade/complexidade. É dizer, de acordo com a diretriz hermenêutica do in dubio pro operário, que o serviço a ser executado deve guardar conformidade com os atributos profissionais, não podendo caracterizar rebaixamento ou superdimensionamento funcional.

Em casos de acúmulo de função em que o trabalhador exerce atividades menos complexas e com remuneração inferior àquela para a qual foi contratado, com contraste substancial entre as tarefas, há nítido desequilíbrio na organização do trabalho. O acúmulo de função, mesmo que para uma função menos complexa, configura alteração contratual lesiva, o que é proibido pelo art. 468 da CLT.

O empregador pode, nos limites do jus variandi, adequar a prestação do trabalho às necessidades do empreendimento, desde que as tarefas exigidas sejam lícitas e compatíveis com a natureza do cargo pactuado. Contudo, ao minimizar o impacto qualitativo e simbólico da imposição de atribuições alheias à função originária, corre-se o risco de legitimar rebaixamentos funcionais implícitos, em afronta à qualidade de vida no trabalho.

Invoca-se com frequência a máxima jurídica “quem pode o mais, pode o menos” (a maiori ad minus) para justificar a atribuição de funções inferiores ao empregado que exerce cargo de maior complexidade. Entretanto, essa lógica é incompatível com a principiologia trabalhista: ao submeter o empregado a funções que não exigem sua qualificação ou especialização, o empregador desvaloriza a força de trabalho contratada e incorre em apropriação indevida de mão de obra qualificada sem contratar funcionário para a execução da tarefa de menor custo.

Além disso, a análise da licitude do acúmulo funcional deve considerar outros fatores, como a habitualidade ou eventualidade da tarefa acumulada, sua execução dentro ou fora do mesmo turno de trabalho, a remuneração relativa à função acessória segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), e a existência de prejuízo contratual, seja ele patrimonial ou moral. Assim, a concessão de tarefas simultâneas, sem prévia pactuação, mesmo de menor complexidade, deve ser analisada sob a ótica da preservação da dignidade, boa-fé e valorização da função laboral.

Logicamente, a compatibilidade das tarefas atribuídas pelo empregador exige avaliação criteriosa, baseada na efetiva equivalência da complexidade funcional. Atribuições que demandem esforço físico e mental adicional, habilidades não previstas no contrato ou desvios da especialização originalmente pactuada comprometem o equilíbrio funcional e a segurança jurídica da relação de trabalho. Para serem lícitas, as atividades acessórias devem guardar pertinência técnico-operacional com o núcleo essencial da função contratada, sob pena de violação ao princípio da proteção e à expectativa contratual legítima do trabalhador.

Colhe-se julgado emblemático a respeito:

ACÚMULO DE FUNÇÕES DEMONSTRADO. ADICIONAL DEVIDO. São devidas diferenças salariais sempre que o empregador, sem qualquer contraprestação, passar a atribuir ao empregado atividades claramente distintas que se adicionam aos misteres originariamente contratados. O acúmulo de função pode, assim, decorrer do exercício de cargo ou mister mais qualificado, para o qual a empresa (ou mercado) habitualmente atribua um padrão mais elevado de vencimentos. Mas também pode ocorrer de as funções serem "inferiores", não inerentes e até mesmo incompatíveis com as do cargo contratado. Em ambos os casos produz-se desequilíbrio em detrimento do trabalhador, com quebra da feição comutativa, onerosa e o caráter sinalagmático da relação, tornando-se exigível a sobretaxação pecuniária de modo a evitar o rebaixamento funcional e salarial indireto, a desqualificação, a ofensa à dignidade do trabalhador, obstando assim, o enriquecimento ilícito do empregador. Em qualquer das hipóteses, o acúmulo de funções pode gerar o direito às diferenças salariais, seja com base em norma coletiva, ou na falta desta, com esteio nos artigos 8 e 460 da CLT. Postas estas reflexões, temos que no caso vertente o demandante logrou demonstrar, por meio do conjunto probatório produzido, que a despeito de atuar como "agente comercial", também realizava atividades pertinentes ao cargo de "leiturista", sem a devida contraprestação. Assim, firmo o convencimento de que, na hipótese em exame, o pedido de reconhecimento de acúmulo de função tem fundamento no exercício de atividades não inerentes ao cargo contratado, razão pela qual faz jus o autor às diferenças postuladas. Recurso obreiro ao qual se dá provimento. (TRT-2, ROT-1000924-20.2021.5.02.0602, Relator: Desembargador Ricardo Artur Costa e Trigueiros, Data da assinatura em 15/02/2023.)

O acúmulo de funções (jus variandi abusivo), mesmo quando relativo a atividades de menor responsabilidade, não pode ser legitimado de forma generalizada. O critério legal definidor é a compatibilidade com a condição pessoal do empregado, e não apenas o nível hierárquico da tarefa. A leitura restritiva, que ignora esse critério, além de contrariar a literalidade do art. 456, parágrafo único, da CLT, viola princípios fundamentais do Direito do Trabalho, como a proteção à dignidade funcional, a vedação ao enriquecimento sem causa do empregador e a valorização da força de trabalho.

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Fontes utilizadas

TRT-2, ROT-1000924-20.2021.5.02.0602, Relator: Desembargador Ricardo Artur Costa e Trigueiros, Data da assinatura em 15/02/2023.

TRT-6, ROT-0000288-55.2022.5.06.0172, Relatora: Desembargadora Carmen Lucia Vieira do Nascimento, Julgado em 05/02/2025.

TRT-8, ROT-0000825-80.2022.5.08.0015, Relatora: Desembargadora Graziela Leite Colares, Julgado em 10/10/2023.

TRT-10, ROT-0000834-54.2023.5.10.0111, Relator: Desembargador Gilberto Augusto Leitão Martins, Julgado em 10/04/2024.

TST, RR-0100221-76.2021.5.01.0074, Relator: Ministro Aloysio Silva Corrêa da Veiga, Julgado em 28/04/2025.

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Nota de autoria

Texto de autoria de Wagson Lindolfo José Filho. 

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