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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Racismo gendererizado: interseccionalidade de opressões

Racismo gendererizado: interseccionalidade de opressões

O instituto do racismo genderizado emerge da compreensão de que as opressões não se manifestam de forma isolada, mas interseccionada, atingindo de maneira particular sujeitos que carregam múltiplos marcadores de vulnerabilidade. Trata-se da sobreposição de discriminações raciais e de gênero, em que estereótipos racistas se conjugam ao machismo e ao sexismo, resultando em uma dupla opressão dirigida especialmente às mulheres negras.

A análise proposta por Grada Kilomba demonstra que a colonialidade persiste como estrutura que organiza relações sociais, produz discursos e narrativas que naturalizam a exploração do corpo negro feminino, relegado historicamente ao espaço do trabalho doméstico e à invisibilidade social. Nesse cenário, a intersecção de discriminações evidencia que, enquanto o debate sobre racismo centra-se na figura do homem negro e o debate sobre sexismo privilegia a mulher branca, a mulher negra se torna o “outro dos outros”, silenciada e destituída de reconhecimento e poder.

No âmbito do Direito do Trabalho, o racismo genderizado assume contornos ainda mais contundentes, pois reproduz hierarquias coloniais que vinculam mulheres negras ao trabalho precarizado, mal remunerado e marcado pela informalidade, sobretudo no serviço doméstico e no trabalho de cuidado. Essa dinâmica reforça a naturalização da exploração de seus corpos e a perpetuação de um ciclo estrutural de exclusão social e econômica.

Uma determinada sentença proferida pela Excelentíssima Juíza Viviane Christine Martins Ferreira do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região ilustra de modo paradigmático essa lógica, ao revelar como a reclamante, ainda criança, foi interpelada não como sujeito de direitos, mas como corpo negro feminino destinado ao labor. Tal quadro, para além de violar frontalmente normas constitucionais (art. 227 da CF/88) e protetivas (art. 4º do ECA), expõe a permanência de estereótipos racistas de gênero que naturalizam a disponibilidade do corpo negro para o trabalho, em nítida reprodução das estruturas coloniais de dominação. Eis parte do julgado:

Nesse mister, para elucidação do caso presente, cite-se de partida que a autora Grada Kilomba, estudando episódios cotidianos de racismo e conectando raça e gênero, em capítulo dedicado a investigar o “racismo genderizado” aproxima sua análise do caso presente. Descreve a autora que quando tinha entre 12 e 13 anos, em consulta médica, recebeu do médico que lhe prestava atendimento a proposta para seguir com o profissional e sua família para uma casa de praia em que estaria com sua esposa e filhos de 18 e 21 anos em viagem de férias, para que na localidade prestasse serviços domésticos, tarefas que não demandariam muito e permitiram que a menina fosse à praia. Investigando a autora a interação entre elementos de raça e gênero, descrevendo o chamado “racismo genderizado”, expõe que “a jovem menina não é vista como criança, mas sim como servente”, de modo que o médico passa a transmutar a relação profissional/paciente para senhor branco/servente negra. Ao interpelar a menina para o trabalho, deixa de ser criança, ficando evidenciado o marcador de menina negra, de corpo passível de exposição para o trabalho. Invisibilizada a infância, é manifesto o racismo entrelaçado pelo gênero. Não se vê a criança, é desumanizada a pessoa, mas fica explícito um corpo negro para o trabalho, um corpo negro feminino para o trabalho doméstico. Sintetiza a autora que mulheres negras, numa sociedade patriarcal e racialmente estratificada, são como “pessoas desaparecidas”, uma vez que no debate sobre racismo o “sujeito” é o homem negro; em debate sobre sexismo o “sujeito” é a mulher branca, compondo as mulheres negras aquelas que tem pouco ou nenhum poder, porque afetadas simultaneamente pelo racismo e pela desigualdade de gênero. São o “outro” em debates sobre raça e “outro” nas discussões sobre gênero. (KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019).

A percepção estabelecida pelas partes reclamadas no encontro com a reclamante-criança, para além de espelhar o racismo genderizado de que trata a autora portuguesa, expõe a colonialidade que atravessa relações étnico-raciais no Brasil. Vista a reclamante enquanto criança que pode trabalhar, enquanto criança pobre e negra de cuja força física pessoas adultas podem dispor, é a hierarquia social e racial que fica explicitada na situação de sujeição da demandante ao trabalho infantil desde muito cedo, ao largo de terem acontecidos os fatos quando já vigentes o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e o artigo 4o do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990). (TRT-5; ATOrd-0000772-92.2022.5.05.0012; Autoria da sentença: Juíza do trabalho Viviane Christine Martins Ferreira; Julgado em 10 de março de 2024.)

Assim, a categoria jurídica do racismo genderizado possibilita compreender que a discriminação trabalhista contra mulheres negras não se reduz a meros atos isolados de racismo ou de sexismo, mas decorre de um processo histórico que entrelaça raça e gênero na produção da desigualdade. Sua identificação no processo laboral impõe ao Poder Judiciário a tarefa de desconstruir discursos e práticas que desumanizam trabalhadoras negras, reconhecendo a especificidade da opressão que enfrentam e garantindo a efetividade de um meio ambiente de trabalho digno, plural e inclusivo. A análise desse instituto, portanto, contribui para uma interpretação constitucionalmente adequada, capaz de enfrentar o legado colonial que ainda sustenta desigualdades no mundo do trabalho e de efetivar a promessa de justiça social inscrita na Constituição Federal.

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Fontes utilizadas

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

TRT-5; ATOrd-0000772-92.2022.5.05.0012; Autoria da sentença: Juíza do trabalho Viviane Christine Martins Ferreira; Julgado em 10 de março de 2024.

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Nota de autoria

Texto de autoria de Wagson Lindolfo José Filho.

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