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segunda-feira, 5 de maio de 2025

Dano quase-morte: dignidade prestes à fatalidade

Dano quase-morte:

dignidade prestes à fatalidade


O termo “experiência de quase-morte” (EQM) refere-se a um conjunto de visões e sensações frequentemente associadas a situações de morte iminente. Dentre os fenômenos mais relatados, encontram-se: a “projeção da consciência”, a “sensação de serenidade” e a “experiência do túnel”. Estudos indicam que pacientes submetidos a situações de risco extremo podem desenvolver sintomas dissociativos e impacto emocional duradouro, ainda que não tenham diretamente sofrido lesões físicas graves.

As experiências de quase-morte e o dano extrapatrimonial respectivo representam fenômenos complexos com implicações médicas, psicológicas e jurídicas significativas. O ordenamento jurídico brasileiro tem avançado no reconhecimento do chamado “dano por quase-morte” ou “risco de quase-morte”, enquanto pesquisas científicas continuam investigando os impactos pré-nocivos na vida das pessoas.

Sob o viés juslaboral, o dano quase-morte visa designar juridicamente a reparação dos impactos sofridos pelo trabalhador que, em razão de condições laborais inadequadas ou da negligência do empregador, enfrenta um evento lesivo extremo que coloca sua vida em risco iminente. Ou seja, pretende-se o respaldo da dignidade prestes à fatalidade. Trata-se de um instituto que transcende a mera indenização por danos morais ou materiais, buscando reconhecer a centralidade da dignidade do trabalhador (art. 1º, III, da CF/88) na proteção jurídica contra riscos ocupacionais letais.

No Brasil, ainda que não expressamente tipificado na legislação, o dano quase-morte encontra amparo nos artigos 7º, XXVIII, da Constituição Federal, 186 e 927 do Código Civil, bem como nos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que impõem ao empregador o dever de garantir um ambiente de trabalho seguro (arts. 157 e 158 da CLT).

A proteção à saúde, como bem juridicamente tutelados inerentes à pessoa física, prevista no artigo 223-C da CLT, possibilita a extensão da indenização ao dano quase-morte, reforçando a necessidade de resguardo efetivo da higidez física e mental do trabalhador. Além disso, a interpretação sistemática dos dispositivos do Código Civil e da CLT permite sustentar que a indenização deve considerar a dignidade humana como princípio fundamental, evitando que a inércia do empregador diante dos riscos laborais resulte em impunidade.

O dano quase-morte no âmbito trabalhista assemelha-se à tentativa penal, prevista no artigo 14, inciso II, do Código Penal, em que a lesão ao bem jurídico não se consuma, mas o perigo e o sofrimento da vítima são inegáveis. No contexto laboral, ainda que o óbito não ocorra, a exposição a risco extremo de morte pode gerar sequelas físicas ou psíquicas relevantes, justificando a reparação. Assim como o direito penal pune o crime tentado, o direito do trabalho deve reconhecer e indenizar o trabalhador submetido a perigo iminente, pois o impacto psicológico e existencial desse evento não pode ser ignorado.

O reconhecimento e a reparação judicial do dano quase-morte exigem a comprovação de pressupostos essenciais: I) ocorrência de um evento trágico de grande impacto e comoção pública (ex.: desastre natural, rompimento de barragem, assalto, explosão); II) ação ou omissão do empregador que exponha trabalhadores a perigo grave e iminente; III) nexo causal entre o evento traumático e as condições de trabalho fornecidas; IV) nexo de efeito colateral indesejável (unwanted side effect), representado por sequelas emocionais ou psicológicas advindas do evento trágico; V) prova inequívoca do abalo emocional sofrido pelo empregado, por meio de atestados médicos, laudos periciais, afastamentos previdenciários ou relatos testemunhais. Demonstrados esses elementos, resta configurado o dever de reparação do dano quase-morte.

A jurisprudência trabalhista, sobretudo arestos do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT-3), tem reconhecido o dano quase-morte como uma categoria indenizatória autônoma, haja vista os impactos profundos na esfera psíquica e física do trabalhador sobrevivente. Nestes casos, principalmente em ações trabalhistas decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, o risco iminente de morte, associado ao estresse vivenciado durante a evacuação e o luto pela perda de colegas, foram considerados elementos suficientes para configurar o dano moral. À guisa de exemplo:

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RISCO IMINENTE. ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO. Embora o reclamante não tenha sido vítima direta da tragédia, o risco de quase morte e o trauma por ele experimentado, além da dor pela morte de seus colegas de trabalho é capaz de gerar abalos de ordem psicológica graves e duradouros, passíveis de indenização. (TRT-3; ROT 0010833-26.2021.5.03.0069; Relator Paulo Roberto de Castro; Julgado em 14/11/2022.)

Outro exemplo recente da aplicação desse entendimento foi o caso de uma trabalhadora que desenvolveu transtorno psiquiátrico após a tragédia de Brumadinho. Exercendo a função de técnica de segurança do trabalho na Mina Córrego do Feijão, a profissional foi uma das primeiras a chegar ao local após o rompimento da barragem, presenciando toda a devastação. De acordo com relatos de testemunhas e o trabalho realizado pela perícia médica, concluiu-se que a trabalhadora desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático diretamente relacionado ao evento, mesmo sem o contato direto com os rejeitos da barragem, o que justificou a fixação de indenização em R$ 80 mil pelo TRT-3, nos autos do ROT-0010310-19.2020.5.03.0014.

A indenização pelo dano quase-morte deve ser fixada à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, considerando-se a gravidade da lesão, os impactos na qualidade de vida do trabalhador e a necessidade de desestimular condutas omissivas ou negligentes do empregador. A reparação poderá abranger tanto os danos morais quanto os materiais, inclusive lucros cessantes em caso de redução da capacidade laboral.

Destarte, a caracterização do dano quase-morte no contexto laboral impõe ao empregador um dever de reparação compatível com a gravidade do ocorrido, reforçando a necessidade de um ambiente de trabalho seguro e hígido. Trata-se de um instituto que reafirma a centralidade da dignidade do trabalhador na ordem jurídica e o compromisso com a prevenção de riscos ocupacionais. A evolução desse entendimento na jurisprudência trabalhista brasileira permitirá uma proteção mais efetiva à vítima, evitando lacunas na reparação dos danos e consolidando a responsabilidade do empregador na tutela da vida e integridade física e psíquica dos seus empregados.


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SERRALTA, Fernanda Barcellos; CONY, Fernanda; CEMBRANEL, Zelia; GREYSON, Bruce; SZOBOT, Cláudia Maciel. Equivalência semântica da versão em português da Escala de Experiência de Quase-Morte. Psico-USF, v. 15, n. 1, p. 35-46, jan./abr. 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pusf/a/r9XMSWQkQgB7rkQkJn3K5rt/>. Acesso em: 01/03/2025.

VON HAESLER, Natalie Trent; BEAUREGARD, Mario. Experiências de quase morte em parada cardíaca: implicações para o conceito de mente não local. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 40, n. 5, p. 197-202, 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rpc/a/X4qkcGZS4N8DwthdQBPhBHg/>. Acesso em: 01/03/2025.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. ROT 0010833-26.2021.5.03.0069; Relator Paulo Roberto de Castro; Julgado em 14/11/2022.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Trabalhadora será indenizada em R$ 80 mil por transtorno psiquiátrico após tragédia de Brumadinho, que completa amanhã seis anos. 2025. Disponível em: <https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/trabalhadora-sera-indenizada-em-r-80-mil-por-transtorno-psiquiatrico-apos-tragedia-de-brumadinho-que-completa-amanha-seis-anos>. Acesso em: 01/03/2025.



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