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terça-feira, 14 de abril de 2020

Aspectos constitucionais relativos à primazia do acordo individual escrito em tempos de pandemia da COVID-19


Aspectos constitucionais relativos à primazia do acordo individual escrito em tempos de pandemia da COVID-19

Em meio a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), com estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, a Presidência da República, principalmente por meio da edição das Medidas Provisórias 905/2020, 927/2020, 928/2020, 936/2020, 944/2020, 945/2020 e 946/2020, procurou estabelecer medidas trabalhistas mínimas para a manutenção do emprego e da renda.

Uma das providências mais polêmicas, tanto na MP 927/2020 quanto na MP 936/2020 (Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda), é justamente aquela que versa sobre a possibilidade de entabulação de acordos individuais nos contratos de trabalho em vigor, conferindo a preponderância destes sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, inclusive no que diz respeito à redução proporcional de jornada de trabalho e de salários, bem como à suspensão temporária da pactuação.

Em tempos de crises institucionais, sobretudo quando originada de grave propagação de doença com índices alarmantes de mortalidade, o intérprete deve verificar a dinâmica laboral sob uma ótica diferenciada, admitindo certa ponderação temporária de garantias constitucionais para proteger o substrato do Direito do Trabalho Clássico, qual seja, o vínculo empregatício. A respeito do chamado Direito do Trabalho de emergência, digno de nota é o entendimento de Lyon-Caen, Pélisser e Supiot, que, de forma sintética, aduzem que “o Direito do Trabalho não protege: ele produz um ‘equilíbrio instável’ entre interesses antagônicos. Em um período de crise, protege mais a empresa que é a fonte do emprego” (LYON-CAEN, Gérard; PÉLISSIER, Jean; SUPIOT, Alain. Droit du travail. 17ª ed. Paris: Salloz, 1994, p. 33).

A situação de pandemia ora vivenciada assemelha-se em muito a um típico Estado de Exceção, mais precisamente a um Estado de Defesa (art. 136 da CF/88), ocasionado por guerra, insurreição ou calamidade, em que se permite certos contingenciamentos a prerrogativas individuais em prol do restabelecimento do bem-estar social. É dizer que, neste cenário trazido pelo coronavírus, lida-se com questões complexas e difíceis que exigem sopesamento e balanceamento de garantias constitucionais contrapostas para alcançar uma síntese democrática e de valorização da própria vida.

Ora, a necessária imposição de mecanismos de enfrentamento da contaminação (isolamento social e quarentena), com o viés precípuo de evitar aglomerações e alastramento, interferem substancialmente no funcionamento do comércio, sobrevalorizando a saúde da população (arts. 6º e 196 da CF/88) em detrimento da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV, da CF/88). Utiliza-se também aqui a chamada cláusula constitucional da solidariedade (art. 3º, inc. I, da CF/88) como instrumento apto de identificação e apaziguamento sociais.

Diante da desaceleração econômica, o empresariado, principalmente as micro e pequenas empresas, encontram-se em situação demasiadamente crítica e inesperada, com queda no fluxo de caixa para a quitação de salários e tributos, instaurando um ciclo vicioso de aniquilação da renda e do consumo. Apesar disso, a parte da população que mais sofre com restrições desta magnitude é, sem qualquer laivo de dúvidas, o chamado exército industrial de reserva, composto de uma grande massa de desempregados, trabalhadores informais e pseudo-autônomos.

Agora, no que tange aos empregados formais, a providência mais válida e legítima seria vedar toda e qualquer dispensa imotivada ou arbitrária (denúncia vazia do contrato), ressalvados os pedidos de demissão e rescisão por justa causa, por determinado lapso temporal (60 ou 90 dias), ou, pelo menos, até que as medidas de contenção da pandemia não se mostrassem mais úteis, em atenção à eficácia irradiante da diretriz fundamental preconizada no art. 7º, inc. I, da CF/88 e na Convenção 158 da OIT (Término da Relação de Trabalho por Iniciativa do Empregador). Nesse mesmo sentido, tem-se o recente posicionamento da OIT (Las normas de la OIT y el COVID-19).

Como as restrições das dispensas foram feitas somente em determinadas situações (por exemplo: adesão das empresas às linhas de crédito previstas na MP 944/2020), privilegiou-se a tratativa negocial prévia pelos próprios partícipes da relação de trabalho (empregado e patrão), desde que respeitados os estritos parâmetros legais, tudo com a finalidade de se manter a renda advinda da pactuação laboral e evitar sobremaneira aglomerações e respostas tardias por parte dos entes sindicais. Cuida-se de estratégia governamental não infensa a críticas e dificuldades de compatibilização teórica com o princípio tuitivo (assincronia clássica), mas que procura, de maneira razoável, operacionalizar na prática a continuidade da relação de emprego.

Calha mencionar que os sindicatos profissionais não foram alijados do diálogo trabalhista neste período de calamidade pública, já que o próprio legislador, malgrado a postura acanhada contida na norma (art. 11, § 4º, da MP 936/2020), instaurou a comunicação obrigatória do ente coletivo, como requisito de validade material da redução de jornada e do salário, verdadeira condição resolutiva (incidência de efeitos imediatos), com a consequente preservação do núcleo essencial da autonomia negocial coletiva (art. 7º, incs. VI, XIII e XXVI, da CF/88).

Não obstante, algumas categorias profissionais são compostas de milhares de empregados e outras sequer são organizadas por uma estrutura sindical básica, dificultando a comunicação rápida e efetiva dos representados, mesmo que de forma telepresencial. Isso não significa que o sindicato não possa participar da negociação individual, mas sim que o seu papel será de incremento do estuário normativo e de fiscalizador nato do cumprimento das cláusulas contratuais.

Lado outro, o legislador demonstrou notável perspicácia ao primar pela preservação do emprego e da renda, antes mesmo da continuidade da atividade empresarial. A força motriz do trabalho se expõe com toda sua expressividade nesta economia globalizada, assumindo o seu protagonismo na solução da crise financeira. Não é à toa que se optou pela redução proporcional da jornada de trabalho previamente ao abatimento do salário, mantido seu valor-hora e percepção de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda. Isso porque a própria Constituição Federal, diferentemente do que fez em seu art. 7º, inc. VI, trata, no art. 7º, inc. XIII, apenas de “acordo” (expressão que não é seguida de coletivo) ou “convenção coletiva” ao se referir à compensação de horários e redução de jornada de trabalho, possibilitando a negociação individual para estas hipóteses.

À luz da precaução que demanda o combate ao coronavírus, a tomada de decisão nas questões laborais deve obedecer o enfoque axiológico dos princípios da necessidade e da temporariedade, isto é, o acordo individual é diligência extrema, mas simplificada diante da urgência de mitigação da contaminação voluntária, logicamente desde que observado determinado lapso temporal. Havendo a constatação de abuso patronal na composição do acordo individual, seja na ausência de concessões recíprocas, seja no descumprimento dos limites impostos na legislação, seja no elastecimento ilícito das medidas paliativas, seja na simulação de crise financeira, seja na fraude da paralisação de atividades não essenciais, seja na falta de comunicação da avença individual ao Ministério da Economia e ao sindicato da categoria profissional, resultará fatalmente em invalidade do negócio jurídico com o pagamento daquilo que se deixou de recolher, cabendo inclusive indenização por dano extrapatrimonial em favor do obreiro porventura lesionado.

Enfim, o certo é que o debate aqui proposto se refere a institutos caros ao Direito do Trabalho e que reverberam acalorados debates, mas que merece uma resposta contundente, transitória e imediata em prol do bem-estar populacional. Assim, com o devido respeito e acatamento das opiniões em sentido contrário, entendo que a primazia do acordo individual escrito em tempos de pandemia da COVID-19 é constitucional, sobretudo de acordo com o postulado da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) e da presunção de constitucionalidade dos atos normativos em geral, contanto que se utilize de uma interpretação conforme a Constituição para oportunizar a intervenção sindical fiscalizatória, independentemente de qualquer custo financeiro, mesmo que de forma posterior. Neste agir, o intérprete emergencial promoverá, em última instância e com as devidas ponderações, os valores maiores da dignidade da pessoa humana (vertente coletiva), dos valores sociais do trabalho, da busca pelo pleno emprego e do trabalho decente (direitos fundamentais, diálogo social, proteção social e emprego produtivo).

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