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segunda-feira, 21 de março de 2016

Teoria dos círculos concêntricos da esfera da vida privada

Teoria dos círculos concêntricos da esfera da vida privada


A doutrina germânica, justamente para diferenciar o caráter público do privado, difundiu a chamada “teoria dos círculos concêntricos da esfera da vida privada’ ou ‘teoria das esferas da personalidade’, que ganhou especial destaque a partir da década de 1950, com os renomados juristas Heinrich Hubmann e Heinrich Henkel, sendo propagada pela doutrina brasileira pelos doutrinadores Paulo José da Costa Junior, Pablo Stolze Gagliano e Flávio Tartuce.

O referido arquétipo epistemológico busca sobremaneira diferenciar o privado, o íntimo, o secreto e o público. Para tanto, utilizou-se de uma representação em que se dividiu a esfera da vida privada do ser humano em 3 (três) círculos imbricados no mesmo centro, de acordo com a densidade de cada um, sendo que a circunferência externa seria a privacidade, a intermediária alocaria o plano da intimidade e, por fim, a esfera mais interna e o menor dos círculos seria exatamente o segredo (Direito da personalidade à intimidade - Silvio Romero Beltrão).

Destrinchando as camadas, nota-se que o instituto da privacidade é a circunferência mais externa e de maior amplitude, abrangendo um grande número de relações interpessoais, inclusive aquelas mais raras e superficiais. Neste aspecto, pode-se cogitar em possível interesse público à informação de tais dados, na medida em que algumas circunstâncias do indivíduo podem ser consideradas relevantes para a sociedade. Trata-se, então, de fatos e informações que o indivíduo almeja, em uma primeira análise, excluir do conhecimento alheio, como a sua imagem, seus hábitos e costumes.

Já no círculo intermediário, encontra-se a intimidade ou confidencialidade. Aqui são protegidos o sigilo domiciliar, o sigilo profissional e algumas comunicações pessoais. É dizer, portanto, que são aquelas informações mais restritas sobre o ser humano, compartilhadas com reduzido número de pessoas de confiança, isto é, ambiente familiar e amigos íntimos.

Por derradeiro, tem-se o círculo do segredo, o menor e mais oculto deles. São aqueles fatos ou informações cujo conteúdo o sujeito não deseja dividi-lo, apenas em restritas circunstâncias. À guisa de exemplos, podemos destacar as opções sexual, filosófica e religiosa.

Tal teoria não está isenta de críticas. Apesar das diversas definições ainda persisti a dificuldade conceitual em delimitar a fronteira entre os círculos da privacidade, da intimidade e do segredo. Inclusive, no Direito Alemão, houve superação desta tese na medida em que, para a devida proteção jurídica, não se pode levar em consideração somente a natureza das informações, mas também a necessidade e finalidade da utilização destes dados.

Todavia, ante o didatismo do referido estudo, é possível aplicá-lo à seara justrabalhista, mormente no que diz respeito às questões que envolvem revista íntima, acesso a e-mail pessoal e direitos de personalidade do trabalhador. Assim sendo, o conceito de intimidade não pode ser tomado de forma deveras superficial, na tentativa de justificar abuso do poder diretivo empresarial, devendo-se preservar o resguardo à confidencialidade do empregado.

Por fim, cita-se julgado trabalhista a respeito:

O conceito de intimidade defendido na defesa da reclamada revela-se sobremaneira superficial, obviamente no intuito de justificar o procedimento abusivo que, reiteradamente, praticava em relação aos seus funcionários.

A recorrida, empresa de grande porte, na verdade, tenta justificar, a prática das revistas na necessidade de defesa de seu patrimônio. No entanto, embora seja inegável que esse direito de proteção assista à reclamada, atualmente, diante da existência de tantos métodos alternativos postos à disposição das empresas e em tempos em que a tecnologia permite a vigilância 24 horas dos seus bens, através de câmeras, sensores instalados nas peças de roupa, e outros meios tecnológicos, afigura-se exercido abusivo do direito, a utilização de outros métodos que, a toda evidência, revelam-se invasores da intimidade e dignidade obreira.

Cumpre frisar que, a prática diária de revista intima ou pessoal, não pode ser convalidada porque agride a dignidade humana fundamento da República. (CF, art. l°, III).

O direito do empregador, de proteger seu patrimônio e o de terceiros termina onde começa o direito à intimidade e dignidade do empregado. A sujeição da empregada a ter que abrir, a bolsa diariamente, retira legitimidade à investida patronal, uma vez que incompatível com a dignidade da pessoa, com a valorização, do trabalho, humano e a função social da propriedade, asseguradas pela Constituição Federal (art. 1°, III e IV, art.5°, XIII, art.. 170, caput e III) e, ainda, porque o texto constitucional veda todo e qualquer tratamento desumano e degradante (art. 5°, inciso III), e garante a todos a inviolabilidade da intimidade e da honra (art. 5°, inciso X ).

Tratando-se de direitos indisponíveis, não se admite sua renúncia e tampouco, a invasão da esfera reservada da personalidade humana com a imposição de condições vexatórias que extrapolam, os limites do bom senso e do poder de direção, disciplina e fiscalização dos serviços prestados.

A revista de pertences não pode ser encarada como regra ou condição contratual, pois, nem mesmo a autoridade policial está autorizada a proceder dessa forma sem mandado ou sem que existam suspeitas seguras e razoáveis a respeito da uma prática delitiva.

A conduta patronal analisada nos autos, a toda a evidência, subverte o ordenamento jurídico em vigor, no sentido de que ninguém é culpado senão mediante prova em contrário (principio da não-culpabilidade), tendo o condão de fazer recair sobre o trabalhador a pecha de delinqüente em potencial.

Anote-se, contudo, que, com base na teoria dos círculos concêntricos, é importante acentuar que o segredo consiste num aspecto da privacidade que é insito à condição humana, traduzindo um direito constitucional de exercido exclusivo de seu titular, sendo deste e de mais ninguém, pertencendo, portanto, com exclusão de tudo e de todos, somente podendo ser compartilhado, na via da exceção, e, mesmo assim, em nome do interesse público, o que não é o caso dos autos.

Ademais, repise-se, atualmente, existe todo um arsenal de dispositivos para monitoramento do local de trabalho, capaz de substituir as odiosas e constrangedoras prospecções de bolsas e vestimentas, mormente numa empresa do porte da reclamada.

O fato de não existirem mais as revistas no âmbito empresarial no caso em comento, revelando a preocupação deste grupo econômico com o componente humano da sua atividade, não o desonera de ser responsabilizado pelas medidas constrangedoras antes adotadas.


A tendência atual, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, através da interpretação da legislação ordinária com embasamento nos princípios constitucionais protetores da pessoa humana, tem sido no sentido de condenar tal prática, o que já vem ocasionando a mudança de atitude das empresas. (TRT-19, RO-1262-25.2011.5.19.0008, Relator: Pedro Inácio, Julgado em 12 de novembro de 2013).



3 comentários:

  1. Entendi toda teoria, no entanto apesar de conhecê-la, especialmente pela matéria muito bem descrita pelo professor Pablo. Não concordo com posicionamento deste magistrado, uma vez que, admitir que uma empresa de grande porte é capaz de buscar formas de fiscalizar a entrada e saída de seus empregados, no que tange a vistoria de seus objetos, não pode ser vista como mero poder diretivo ou mesmo empresarial, uma vez que o empregador além daquelas discussões a respeito da mais-valia, direito inclusive garantido na Constituição, uma vez que nunca se abominou o lucro, também deve garantir a integridade de seus empregados, afinal não é desconhecido eventos em que empregados agridem fisicamente outros, bem como utilizam-se da empresa para venda de produtos ilícitos, por assim dizer. Ponto engraçado é que qualquer empregado ao entrar em um banco ou uma pessoa ao viajar de avião deve passar por uma roleta e muitas vezes deve mostrar tudo que tem no corpo inclusive tendo que tirar peças de roupa. Talvez dizer que pra proteger a coletividade tudo possa ser permitido ou quase tudo, o mesmo não ocorre a grande maioria das empresas, que muitas vezes são vistas como apenas visionárias do lucro e nunca criadoras de emprego. Tal decisão, apresentada no texto, é interessante porém é desesperador imaginar que tudo possa ser feito para garantir direitos do empregado, inclusive interpretação fora daquela disposta nas normas protetivas, em detrimento de um direito que é de todos, afinal garantir apenas o direito de um é indeferir o direito de todos. Discordo de seu posicionamento.

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    1. Olá!
      O objetivo da postagem é apenas a exposição dos principais pontos da referida teoria.
      Conforme exposto no quadro de avisos contido na coluna esquerda do blog, "é de ressaltar que as postagens aqui veiculadas não refletem necessariamente o posicionamento jurídico deste magistrado em demandas reais a ele submetidas. Os litígios são julgados de acordo com o contexto probatório e com o livre convencimento motivado exposto nas próprias decisões, não vinculando-se às opiniões aqui discutidas."
      Apesar da discordância, fico bastante grato com o comentário, pois servirá para enriquecer o debate.
      Aos estudos!
      Att.

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  2. Há um problema. Um supermercado tem mercadorias expostas, à disposição clientes, que escolhem e vão pagar. Se um produto pequeno
    é posto no bolso ou bolsa de um cliente, alguém o revista ?
    Só o empregado é suspeito. A maioria deles é honesta, principalmente porque não querem perder o emprego.

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